quinta-feira, 1 de março de 2012

Modernismo e Raça Negra

imagesMarcos Vinícius Ferreira de Godoy
A literatura e a pintura, desde o século XVIII, retratam o negro como incontestável integrante da história brasileira. O negro figura como personagem na literatura desde o Romantismo de Castro Alves em seu "Navio Negreiro", bem como aparece nas gravuras de Debret do início do século XIX, durante o contexto da Missão Francesa contratada por Dom João VI. O modo pelo qual as artes literária e pictórica retratam o negro se mostra particularmente especial no advento do Modernismo, no início do século XX. No contexto da realidade social brasileira no início do século XX, o negro não havia logrado rechaçar, como ainda não o fez, as desigualdades sociais engendradas pela sua condição prévia de cativo, recém-liberto a partir da assinatura da Lei Áurea em 1889. Da confluência dessas observações pode-se afirmar que o movimento modernista dos anos de 1920, além de ter contribuído para maior distanciamento entre a realidade social e a arte no período, não foi capaz de sequer mitigar as barreiras do preconceito racial no Brasil.
Verifica-se, no conjunto das obras do período, a caricaturização do negro, atitude essa discrepante das intenções de criação de uma identidade esteticamente genuína da realidade brasileira, conforme propalado no Manifesto Antropofágico de 1928. Macunaíma, o herói sem caráter de Mário de Andrade, primeiro negro na formação étnico-cultural do Brasil, é um tipo preguiçoso, consequência da escassez de água limpa para purificação de sua raça. Pode-se dizer que muito pouco da condição social do negro havia mudado desde a edição da lei de abolição da escravatura, havendo críticos que afirmam a ocorrência de depreciação das condições gerais de vida em função do abandono disseminado da população negra e sua substituição pela mão de obra imigrante. Em decorrência desses dois fatores, a caricaturização do negro pelos modernistas e sua estagnação social, outro aspecto, cuja ênfase se assenta na desconexão entre realidade social e produção artística modernista, surge com expressivo vigor.
O Modernismo, cuja origem foi em São Paulo, representa a associação de uma seleta elite intelectual abastada e branca, patrocinada pela economia em desenvolvimento do café. Para que a realidade social do negro fosse devidamente retratada pela arte de seu tempo necessário seria que aqueles artistas tivessem algum grau de identificação com o tema a ser representado. Não foi o que ocorreu. Partiram de uma idealização equivocada da realidade fundamentada em valores não compartilhados por classes sociais muito distantes entre si. Os modernistas retomaram a exaltação da cor local romântica, presente na supervalorização do ameríndio na prosa de José de Alencar, com o mesmo viés idealizante e desconexo da realidade vivida pelo destinatário dessa idealização.
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As intenções aventadas pelo Modernismo em seu manifesto restaram frustradas quando, na tentativa de criação de uma arte genuinamente brasileira, as formas estrangeiras vieram a ser reproduzidas com a adição de elementos da cultura doméstica. O Modernismo poderia ser desse modo caracterizado antes como uma arte de transição, sem engajamento social ou sem compromisso com a realidade social. Não se debruçou, por sua vez, sobre as condições de posicionamento do negro na realidade social brasileira.

Preferiu-se, a despeito dos postulados de criação da brasilidade estética, a reprodução de antigas fórmulas artísticas com a inclusão de novos elementos, alçando o negro à categoria de objeto de arte, desconectado de sua relevância para a composição do tecido social brasileiro. Possivelmente, o distanciamento entre a arte e a realidade social perpetrado por meio do Modernismo contribuiu para a camuflagem do preconceito racial no Brasil, ao caricaturizar o negro como figura arquetípica, ao invés de apresenta-lo como um agente relevante na história do país.
Diante da inaptidão do movimento modernista em retratar, fielmente, o negro no espectro social brasileiro, resta a constatação de que a conexão entre arte e realidade perfaz ideal de difícil alcance. Necessário se faz que a produção artística se comprometa a obter um maior grau de engajamento com as realidades múltiplas que a rodeiam, permeável a suas tribulações e idiossincrasias. Sem essa perspectiva, a arte rende-se tão somente aos caprichos da forma, atividade-meio sem colimação de fins mais legítimos e auspiciosos.

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