segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O caso mensalão, Joaquim Barbosa e o Movimento Negro


por Dojival Vieira ( Jornalista Responsável e Editor de Afropress)   Dojival Vieira ( Jornalista Responsável e Editor de Afropress)
Não há como escapar da conclusão óbvia: a condenação dos dirigentes do PT José Genoíno, Delúbio Soares e do ex-ministro José Dirceu por corrupção ativa na ação penal 470 (o caso mensalão) é o primeiro julgamento político do país, após o processo de impeachment que resultou na absolvição do ex-presidente Fernando Collor.

Não que os fatos não sejam eloquentes, demonstrados à exaustão pelo ministro relator Joaquim Barbosa, o único negro dos 11 ministros do STF e primeiro negro a presidir a Corte em toda a história da instituição. Parece fora de dúvida que, ao contrário das negativas e evasivas dos vários personagens envolvidos, havia, sim, um esquema para submeter parlamentares por meio do pagamento de pensões mensais para garantir a base de apoio ao Governo.
Contudo, o caráter político do julgamento fica explícito, na medida em que a maioria dos ministros do Supremo condenou menos com base nas provas presentes nos autos e mais pela presunção de que Dirceu e Genoíno não poderiam desconhecer o esquema. A presunção aqui, se é para sermos técnicos, deveria ser usada em favor dos réus, nunca para condená-los (In dubio pro réu).
Não é demais lembrar que em toda a história do Supremo Tribunal – que teve origem na Casa da Suplicação, com a transferência da família Real, em 1.808, para o Brasil – essa foi a primeira vez que a corte condenou políticos por corrupção. Seria apenas uma coincidência que os primeiros fossem exatamente dois dirigentes da resistência à ditadura – Genoíno, torturado e preso na guerrilha do Araguaia; e Dirceu, trocado pelo embaixador americano em consequência de uma das muitas ações das forças guerrilheiras que lutavam contra o regime?
Até as criancinhas sabem que a corrupção sempre foi uma realidade neste Estado patrimonial, racista e excludente que é o Brasil. Corrupção, como se sabe, vem do latim corruptus, que significa quebrado em pedaços, o verbo corromper significa “tornar pútrido”.
Políticos corruptos notórios, alguns dos quais sequer podem sair do país sob o risco de serem presos pela Interpol, inclusive, (ironia das ironias!) membros da base aliada dos Governos Lula e Dilma, jamais tiveram tal veredicto.
Alguém, em sã consciência, pode considerar plausível que Genoíno e Zé Dirceu sejam corruptos, na acepção literal da palavra, ou seja, que “utilizaram-se do poder ou autoridade para conseguir obter vantagens e fazer uso do dinheiro público para o seu próprio interesse, de um integrante da família ou amigo”?
Caráter político
Claro que não. Concorde-se ou não – e em nosso caso temos total discordância na forma e no conteúdo da concepção política encarnada por Genoíno e Dirceu -, tudo foi feito em nome de um projeto a que ambos dedicaram a vida, o que é inquestionável.
Daí a reação quase perplexa da ministra Carmem Lúcia ao dizer. “Não estou julgando as histórias de pessoas que em diversas ocasiões tiveram a vida reta. Estou julgando os fatos apresentados nestes autos e tendo de reconhecer se houve ou não a prática que é imputada pelo Ministério Público”.
Na realidade, não apenas ela, mas os demais ministros, não julgaram nem fatos, nem histórias, mas uma concepção política que tudo justifica, que subverte princípios desde que se garanta, a qualquer custo e preço, a conquista, a manutenção e a preservação do poder e a continuidade do projeto. É isso o que explica o caráter político do julgamento.
Segundo admitiu a própria ministra em seu voto, “apenas a circunstância de ter sido presidente do PT à época não é suficiente para condená-lo pela prática do crime”. Porém, observou “que recursos foram distribuídos, acordos de milhões de reais foram feitos e Genoíno estava presente nas reuniões”. Acrescentou que as “provas dos autos (reconhecidamente frágeis do ponto de vista técnico-jurídico) levam a crer que houve a prática ilícita de corrupção ativa”.
No caso de Dirceu, a mesma ministra confirma não haver documentos assinados que comprovassem participação no delito, mas para condená-lo invocou declarações de Delúbio e concluiu que tais declarações “são, no sentido de que ele tinha respaldo, ainda que subliminarmente”. Falou ainda de reuniões na Casa Civil “que não eram simplesmente audiências, mas tinham os mesmos personagens”.
Convenhamos: é muito pouco para uma sentença condenatória e menos ainda para lançar sobre alguém que, reconhecidamente, não se locupletou nem enriqueceu às custas do erário, o estigma de corrupto.
A questão que se coloca é: a Corte que tem como papel ser a intérprete da Constituição da República, pode também julgar concepções de poder, a partir de evidências e indícios. Ou é em provas que se deve basear?
Debate mais amplo
A discussão é outra. Bem outra, aliás, mas esta, nesses tempos em que a política foi rebaixada a mera operação de marketing, não está sendo feita porque os protagonistas (prós e contras) não têm interesse ou não podem fazê-lo; uns porque preferem surfar na correnteza de informações enviesadas oferecidas diariamente pela mídia e ecoar o senso comum de que a política e o ilícito são irmãos siameses; outros, em especial, o PT, que, posto na encruzilhada de uma prática legalmente condenável, esquivam-se do debate político mais profundo e necessário, qual seja: revelar à sociedade as vísceras de uma concepção política em que se confundem a ambição de poder dos seus próprios dirigentes e a luta por transformações estruturais na sociedade brasileira.
O Partido poderia aproveitar o caso para fazer uma autocrítica sincera dessa concepção antiquada de conquista e manutenção de poder que abraçou ao ter como dirigentes Dirceu e Genoíno, ambos oriundos do núcleo da esquerda armada ao regime, e a qual o lulismo prazeirosamente se rendeu para ganhar eleições.
Na verdade, ao julgarem Dirceu e Genoíno, o que os ministros condenaram foi esta ideia de que “os fins justificam os meios” – quaisquer meios. Trata-se da surrada máxima extraída de velhos manuais de um leninismo obsoleto que permite ao dirigente tomar qualquer atitude (dentro ou fora da lei) para garantir e preservar o seu projeto de sociedade.
O ministro Ayres Brito se referiu assim ao núcleo político que, segundo ele, não tinha projeto de governo, mas de poder: “Com a velha, matreira e renitente inspiração patrimonialista, um projeto de poder foi arquitetado. Não de governo, porque projeto de governo é lícito, mas um projeto de poder que vai muito além de um quadriênio quadruplicado, muito mais de continuidade administrativa. É continuísmo governamental. Golpe, portanto, nesse conteúdo da democracia, que é o republicanismo, que postula renovação dos quadros de dirigentes”, declarou.
Por essa lógica, Zé Dirceu e Genoíno, sentiram-se à vontade para conceber e desencadear – utilizando-se de toda uma rede de terceiros – um esquema de arrecadação de fundos públicos para manutenção da base aliada e fortalecimento do partido, porque assim o exigia o projeto de poder a partir da chegada de Lula à Presidência da República. Passar por cima da Lei, abandonar princípios éticos, não importava. Às favas com a ética e com moralismos.
Foi isso que o STF fulminou com a condenação dos dois dirigentes e de Delúbio, o burocrata “pau para toda obra” da secretaria das finanças, que chegou a ser expulso do PT para ser em seguida reabilitado em 2011.
O processo é político porque esconde o principal interessado na operação mensalão, o próprio Lula, beneficiado pela anêmica oposição tucana e deixado de fora da denúncia pelo Procurador Geral da República. A abertura de um processo de impeachment àquela altura teria se desdobrado numa crise institucional sem precedentes no país, levando-se em conta o apoio popular ao ex-presidente.
Não por acaso, Lula oscilou entre pedir desculpas no primeiro momento, ao ser surpreendido pela denúncia, prometer que se dedicaria a desconstruir a história do mensalão ao deixar o cargo e, finalmente, atribuir agora as primeiras condenações do esquema, que a mais alta corte considerou criminoso, à “hipocrisia” do Supremo.
O novo herói
Transformado em celebridade nacional com direito a capa da Revista Veja, cuja posição editorial conservadora é mais do que conhecida, o ministro Joaquim Barbosa virou febre nas redes sociais, nas quais é saudado como herói, vingador dos pobres e oprimidos e da corrupção no país. Sua postura corrobora a impressão.
Percebe-se na leitura dos votos que não há distanciamento entre Barbosa e os autos porque – com raras exceções – está convencido de que os réus são todos culpados. É sintomática a estratégia do fatiamento para dar ao julgamento enredo de novela até chegar ao núcleo político – a direção do PT.
A princípio chama a atenção que o único ministro negro do STF tenha ganhado tal papel e notoriedade, quando ele próprio – eleitor confesso de Lula e Dilma -, frequentemente, queixa-se e denuncia como fez na Veja o racismo presente nas instituições.
Sem levar em conta as regras e a tradição da Corte, é visível que Barbosa – o menino pobre e negro de Paracatu que aprendeu desde cedo ter como principal ativo a altivez – ganhou tal fama por julgar a concepção política de poder encarnada por Zé Dirceu e Genoíno.
De um lado, seu voto expressa a visão de setores da sociedade muito influentes na classe média – inclusive na incipiente e quase inexistente classe média negra – que costuma seguir a correnteza do falso moralismo udenista e retrógrado e vive à busca de heróis – não importa quais sejam; de outro, tampouco se pode esquecer que chegou a ministro do STF pelos seus méritos inegáveis (é um vencedor), mas também porque Lula foi sensível à demanda histórica colocada pelo Movimento, para quem a ausência de um negro na mais alta Corte era a evidência do quase apartheid em que vivemos.
Seria prudente que o Movimento Negro não se apressasse a celebrar a postura de seu mais recente herói, inclusive porque o mesmo, pelo que se sabe, não se considera dele porta-voz, e nem poderia, a menos que passemos a aceitar o retrocesso da representação classista, própria ao fascismo do Estado novo.
Consagrá-lo e celebrá-lo como herói de um julgamento político para o Movimento Negro pode significar um tiro no pé. Até a deusa Atena – a estátua da mulher com olhos vendados que representa a Justiça de prontidão em frente ao prédio do STF – sabe que, em julgamentos políticos, somos nós – os negros, os pobres, os desvalidos, os injustiçados de sempre que perdemos. Ainda que a impressão seja a de que estamos ganhando de goleada.

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